Não é novidade que de tempos em tempos aparece, nos cinemas, grandes personagens que se tornam marcantes para toda uma geração. Imersos em uma narrativa, protegidos pela distância de uma grande tela iluminada, vemos projetado não só o entretenimento, mas muito dos nossos desejos, anseios e angústias. Trata-se de uma projeção do que trazemos em nós, que, por vezes, mal podemos nos dar conta.
O filme Coringa, dirigido por Todd Phillips, certamente representará um desses filmes para os nossos tempos. Ele nos impacta. É impossível assisti-lo sem ser tomado por um grande desconforto que, logo ganha contorno por não conseguirmos distinguir, de imediato, se o protagonista ri ou chora, em sua primeira aparição. O desenrolar do filme nos esclarece que Arthur Fleck, o personagem que vem a se tornar o Coringa, sofre de uma condição psiquiátrica peculiar que o leva a rir inadvertidamente.
Passamos a acompanhar com angústia sua rotina, em cenas que denunciam o estranho: o estranho desenho de seu corpo magro, seco, que ganha outra vida ao dançar; os escritos em um caderno que misturam comédia e terrores; sorrisos forçados pelos dedos que não expressam alegria… O estranho em Arthur Fleck lança luz ao estranho em nós. Em 1919, Sigmund Freud descreve o “estranho” como aquela categoria do assustador, do oculto, mas que remete a algo que é conhecido, velho, há muito familiar. Nesse sentido, nos tornamos estranhos expectadores das dores de Arthur. Experimentamos sentir junto a ele as angústias de sua existência, que nunca é validada.
Sob essa perspectiva, o filme do Coringa trata, basicamente, da necessidade humana de escuta. De recebermos a legitimação de nossa existência pelo encontro com o outro. São vários os momentos em que Arthur se vê desprezado, negligenciado e anulado. Ao mergulharmos em suas fantasias, experimentamos breves momentos de consolo, pois somente ali vemos o protagonista recebendo suporte, até nos lançarmos novamente ao desamparo, por se tratar de ilusões. Arthur sofre e começa a dar voz ao seu sofrimento. Descobrimos que a violência se revela para o personagem, como uma antiga companheira.
Em busca de si, Arthur descobre que a mãe havia lhe escondido sobre sua adoção e que também sofria de sérias condições psiquiátricas, lhe causando ao longo da infância, inúmeras vivências de maus tratos e negligências. Após inúmeras cenas em que vemos Arthur se despedaçando, psiquicamente, o rompimento com o que acreditava ser sua origem se torna o ponto mais sensível para a morte de Arthur e o nascimento do Coringa. Alguém que não é em si, que não tem ninguém por si. Alguém que expõe o avesso: o cruel das relações, das mentiras, das incoerências, da violência.
Nesse sentido, torna-se bastante pertinente a identificação das pessoas de Gotham City com o Coringa. Pessoas que usam máscaras de palhaços e celebram a ascensão de um anti-herói que passou a dar uma cara, pintada, generalizada, para a manifestação de muitas dores, muitas insatisfações. O que isso pode nos dizer sobre abandono? Sobre Arthur Fleck não ter sido efetivamente adotado, por sua mãe, pela sociedade, mas ter se tornado um símbolo para os cidadãos descontentes da cidade fictícia?
A palavra adoção vem do latim adoptione, que significa “considerar, olhar para, escolher.” A Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (ANGAAD) trabalha na perspectiva de consolidar, em todo o Brasil, uma cultura da adoção. Nesse sentido, trabalhamos não só em função de promover a defesa dos direitos à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes, na perspectiva das diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), representando os Grupos de Apoio a Adoção junto aos Poderes Públicos instituídos e às Organizações da Sociedade Civil. Também investimos esforços para que a sociedade possa refletir transformações sociais por meio do exercício de atitudes adotivas!
Para isso, vale a pena considerarmos o conceito de alteridade. Se nos constituímos enquanto humanos pelo investimento em uma relação com um outro, é muito importante que referendemos o lugar deste outro, que pode ter necessidades, que pode sentir e até mesmo existir de forma muito distinta da nossa. É preciso escuta sensível e olhar generoso para adotarmos o diferente. Isso é imprescindível quando a filiação ocorre pela via da adoção, mas se pensarmos bem, isso ocorre o tempo todo também em nosso dia-a-dia. Será que a população de Gotham City não exprime exatamente esse desamparo, reflexo de uma sociedade desigual e dissimulada?
O princípio da adoção é a verdade. O filme do Coringa explicita que precisamos uns dos outros para ressignificarmos nossas dores, de verdade. Carecemos de referências para sabermos quem somos e como é o mundo. Desse modo, precisamos adotar mais atitudes que permitam o reconhecimento legítimo e verdadeiro do outro, para que possamos dar sentido para nossa experiência humana. Uma frase como “eu não posso imaginar como você está se sentindo, mas há algo que eu possa fazer por você?” é um bom exemplo de como começar a praticar, com alteridade, a atitude adotiva! Que tal começar hoje?
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Por: Lorena Candelori Vidal Assessoria de Psicologia ANGAAD |