Caro filho negro…

Agradeço a Deus por ter te encontrado. Andei por aí, baldo de amor, cambaleando em caminhos áridos, pelos labirintos da minha ignorância. Antes de você, minha vida monocromática se desenrolava num enfado sem fim. Vida de papel vazio, branco, sem pincelada qualquer, indigno de rascunho. Coração de pedra, sôfrego de afago e de afagar.

Olho agora para nossas mãos dadas: mão de pai, mãozinha de filho, uma branca e uma preta, entrelaçadas, fundidas em aperto de carinho, e você me pergunta candidamente, “pai, você viu a diferença entre as nossas mãos?”, eu digo bisonhamente “vi não, filhote! Qual é?”. Sua respostinha acachapante me enche os olhos de água benta: “a sua é grande, a minha é pequena”.

Ah, Lágrima santa que me desce o rosto, testemunha de um mundo generoso no qual se pode amar o desigual, àquele que não deriva do animal que involuntariamente habito: filho por escolha afetiva, filho por procura, filho por encontro, filho-filho mesmo. Dos amores fortuitos da rua, sabemos que só existem estes, os amores fortuitos da rua, que nunca obedecem a uma lógica racional predeterminada. Amores programados, planejados, milimetricamente articulados, esses, coitados, não há.

Se existisse uma máquina para criar pessoas perfeitas teríamos a suprema tentação de colocarmos ali, num só ser, todas àquelas virtudes dos heróis, para termos um amor ideal pelo ser imaginado. Tolice pura, filho amado, se esperar por esse Frankenstein da perfeição, ser desumanizado, impossibilidade concreta e abstrata. Alias, guri, posso te garantir que Ser Perfeito já existe: Ele nos apresentou um ao outro, acendeu nossos corações e nos acompanha pelo caminho. Ele é Amor.

Essa idealização não nos pertence: somos nós de carne, osso e alma, de tentativa-erro-e-acerto. A perfeição não está na gente, está no amor que a gente sente. Nós dois somos parte de uma mirabolante história que acabou bem, felizes-para-sempre, porque nós queremos que assim seja. A simplicidade desta nossa decisão é desconcertante: você me quer para pai, eu te quero para filho, e nós juntos queremos amar o mundo. Todo o resto é conversa para boi dormir.

Uma coisa me alegra. Nos encontramos numa época boa. Se fosse antes, bem antes mesmo, eu seria seu dono, português branco, e você, meu escravo africano. Assim era em função da burrice humana e da cor da nossa pele. Esquisito, não é? Mas hoje é diferente: você pode ser meu filho e eu posso ser seu pai. Por amor que sinto, a vingança do destino brincalhão me fez cair do posto de patrão, de dono, de vilão. Virei eu um servo deste sentimento, deste afeto caudaloso que me borbulha alma a fora. Branco bobo de amor, escravo voluntário de carinho vivido.

Bem, filhinho, já escrevi demais. O amor é para ser vivido em grama verde, de corrida e pega-pega, sob o céu de brilho azul. Vamos para lá, para o mundo real, de piquenique e cabra-cega, de dever de casa e banho quente. Mundo que, ao teu lado, faz sentido em meu viver.

Sávio Bittencourt

Pai adotivo e biológico, o Procurador de Justiça Sávio Bittencourt é um dos fundadores do Quintal da Casa de Ana – Grupo de Apoio à Adoção de Niterói, foi Presidente da ANGAAD (Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção) na gestão 2007-2009. É autor dos livros “A Nova Lei da Adoção – do abandono à garantia do direito à convivência familiar e comunitária”, “Revolução do Afeto” e “Guia do Pai Adotivo”, Nino e a Casa dos Meninos Invisíveis e articulista do jornal O Estado (CE).

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